Devia estar louco ou noutro planeta. Ouvira falar no Copérnico, no Galileu. Sabia muito bem que havia outros mundos. Teria ido para o Inferno? Evidentemente, ali não era o céu.
Aliara a profissão de sapateiro com a de coveiro. Cometera os seus pecados, cobiçara a mulher do vizinho aguadeiro e roubara alguns sapatos aos defuntos mais abastados, assim que as famílias viravam costas e antes de os baixar à cova. Mas nada que valesse aquela tormenta.
Encontrava-se num caminho de aspeto muito estranho, tinha um chão repleto de pedras muito alinhadas e lisas, a terra desaparecera, e não via excrementos, não via cavalos, nem carruagens, nem bestas. Havia ainda muita luz. Não percebia como funcionava, mas os postes tinham uma carapuça que brilhava. As casas (seriam casas!?) amontoavam-se umas em cima das outras. E havia ainda umas coisas com rodas, mas não eram carroças. Deitavam fumo e faziam muito barulho.
As pessoas agitavam-se e corriam atrás umas das outras como loucas. E que roupas trajavam! Credo! As mulheres de calças. Sim, eram mulheres por causa dos seios, mas traziam calças como as dos homens, algumas até rotas e esfarrapadas. E os homens — ter-se-iam esquecido de vestir as calças? Andavam só com ceroulas muito justas. Outros nem percebia bem se eram homens ou mulheres — usavam brincos e até lhe pareceu ter visto uns com brincos no nariz. Podiam ser escravos, no entanto andavam soltos — teriam ganho alforria? Devia haver também uma praga grande de piolhos, algumas mulheres tinham o cabelo vermelho, por certo tinham posto mercúrio para os eliminar.
Muitas pessoas paravam junto a um poste e ali ficavam quietas. Não conversavam. Tinham umas caixas na mão e martelavam, batiam-lhe com um dedo. Mas as caixas não se abriam, não viu sair nada de nenhuma. Vários, sobretudo moços, tinham as orelhas doentes por certo, pois usavam algo a tapá-las, tinham um ar atoleimado, não deviam estar bem da cabeça, abanavam-na muito. Seria alguma peste?
Dirigiu-se a um homem que lhe parecia ser normal. Tinha barbas brancas e devia saber ler, tinha uns papéis grandes nas mãos. Perguntou a medo:
— Vossecelência pode dizer-me quem é o rei desta comarca?
O homem desconfiado, mediu-o de alto a baixo e respondeu-lhe:
— Perdão… Rei? Boa pergunta… mas aqui nesta comarca, como o senhor diz, agora não há rei nem roque. Aliás, duvido até que haja democracia, é só corrupção. Já viu? Aqui nas notícias, do jornal, hoje só falam dos casos marquês, visa, gold. É uma cambada de patifes, uma corja que nos governa. E sem falar na bola. Estamos feitos ao bife.
Não entendera nada do que o homem lhe dissera. Percebeu que estavam sem rei, não compreendeu o que se passava com o Marquês, com uma bola e muito menos com os bifes. Que raio!
Entretanto, aproximou-se uma daquelas coisas com rodas, mas esta era grande. Abriu portas e as pessoas meteram-se lá dentro. Iam comprimidas, amontoadas. Tinham ainda menos espaço do que os corpos na vala comum.
Continuou a observar o que se passava ao seu redor. Tinha que compreender onde estava e como voltar. Desta vez avançou direito a um jovem, que ou estava de nojo ou devia ser um guarda, trajava só de preto e tinha uns chapins. Questionou:
— Diga-me asinha por obséquio, em que ano de Nosso Senhor estamos?
— ‘Tás-me a mangar, meu. Ó pá, vai mas é chatear o Camões. Tens muita lata! Mas que cena! Olha-me este gajo…
E o rol continuou… não conhecia aquela língua, ninguém o compreendia, nem ele entendia o que lhe diziam. Cena? Teria ido parar ao teatro? Sentia-se um forasteiro.
O físico bem lhe dizia para não beber. Estava a matutar nisto quando se apercebeu de uma pegadilha. Os homens de duas daquelas coisas com rodas tinham feito uma amálgama, gesticulavam, gritavam, pareciam quase prontos para um duelo.
Os outros estavam felizes, os sinos daquelas coisas com rodas tocavam a repique. Só tinha assistido a um espetáculo assim aquando dos anos do rei D. João V e da inauguração do convento de Mafra. Andara cinco dias para lá chegar, mas valera a pena. Tinha conseguido escapar ao recrutamento para a sua construção por ser coveiro e haver muito míster. Lembrava-se bem — estava então no ano de 1730. A cerimónia da sagração da Basílica fora a 22 de outubro, data do 41.º aniversário d’el rei – o Magnânimo.
Os sinos — noventa e oito — tinham começado a ser instalados. Ele e mais cerca de 3000 pessoas apenas puderam ouvir o da torre norte. Não compreendera como era o seu meneio. E havia ainda muita coisa por concluir, mas …
— Zé Maria, vem jantar!
A mãe interrompia-o. Aceitara o desafio da professora de português — “um texto com estranhamento” e agora que introduzira uma personagem do século XVIII em pleno século XXI tinha de o devolver à sua realidade. Como dar a volta ao assunto? Teria de pensar nisso depois do jantar. A mãe era rigorosa com os horários e as refeições.